O que é capacitismo e como podemos combatê-lo?

IFSC VERIFICA Data de Publicação: 26 set 2023 15:06 Data de Atualização: 26 set 2023 16:16

Um olhar de pena, uma pergunta invasiva, uma tentativa de elogio ou até um ditado popular estão entre as muitas maneiras em que o preconceito contra pessoas com deficiência se manifesta no dia a dia. São atitudes que se perpetuaram na sociedade ao longo das gerações e que podem parecer inofensivas para quem não tem deficiência, já que não impedem nem dificultam o acesso à escola, a uma casa de espetáculos ou a um plano de saúde - situações em que a Lei nº 13.146 de 2015 prevê punições como a detenção de dois a cinco anos. Mas são barreiras atitudinais que agridem e dificultam o bem-estar das pessoas com deficiência.

No post desta semana, conversamos com três servidores e dois alunos do IFSC: o professor de História do Câmpus Florianópolis, Viegas Fernandes da Costa; a psicóloga do Câmpus São José, Karla Garcia Luiz; o assistente em Administração do Câmpus Joinville, Raphael Henrique Travia; o estudante do curso técnico em Telecomunicações do Câmpus São José, Thiago de Sousa, e o estudante do técnico em Mecânica do Câmpus Joinville, Cleverson da Silva, além da pedagoga Grazielle Franciosi da Silva, que é supervisora de atividades educacionais nuclear da Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE).

Nest post, eles ajudarão a esclarecer:

- O que é capacitismo?
- Como ele pode ser percebido no dia a dia?
- Por que o capacitismo é estrutural em nossa sociedade?
- Você é capacitista? 
- Quando abordar o tema deficiência?
- Como construir uma cultura anticapacitista?

O que é capacitismo?

Este termo é recente no Brasil, começou a ser difundido há cerca de 10 anos. Mas apenas a palavra é nova, porque o que ela significa tem séculos de existência. Capacitismo é o preconceito contra as pessoas com deficiência, em que se julga que elas não são capazes  ou são inferiores. Por pessoas com deficiência entende-se aquelas com impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Os entrevistados destacam que uma das origens do capacitismo está em colocar a deficiência acima do sujeito e não apenas como uma característica dele. Este é um dos motivos do termo correto ser pessoa com deficiência e não deficiente, assim, não se restringe o sujeito somente a sua deficiência. Como destaca o professor Viegas: "a minha condição física não pode ser vista como maior do que o que sou como ser humano. Meu corpo faz parte da diversidade de corpos".

Outra reflexão que a psicóloga Karla traz é: "Uma pessoa com deficiência física, por exemplo, tem dificuldade de locomoção ou é o ambiente que a impõe essas restrições?"

Como o capacitismo pode ser percebido no dia a dia?

Para entendermos o quanto o capacitismo pode ser cruel e doloroso, tente se colocar no lugar de uma pessoa com deficiência. Imagine andar na rua utilizando uma cadeira de rodas. As principais barreiras que se pode pensar são as arquitetônicas - as dificuldades para percorrer um caminho sem acessibilidade. Mas neste post o foco são outras barreiras, as atitudinais - aquelas provocadas pelas pessoas.

Karla, que também é pesquisadora e consultora em deficiência, afirma que o capacitismo não está apenas em situações como a recusa de matricular uma criança com deficiência na escola, que por sinal é crime previsto na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015, mas em atitudes que muitas vezes passam despercebidas por quem não tem deficiência. 

Esta mesma lei, conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, visa "assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania", além de prever penas administrativas e criminais a quem "praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência".

Neste vídeo, ela e outros dois servidores e dois alunos do IFSC relatam situações vividas no dia a dia:

Por que o capacitismo é estrutural?

Assim como o machismo e o racismo, o capacitismo é estrutural em nossa sociedade, ou seja, está enraizado na forma como vivemos e percebemos o outro. Diversos aspectos históricos levaram à construção da ideia de inferioridade das pessoas com deficiência. Na Grécia antiga, por exemplo, o ideal do corpo belo e forte destinava à morte bebês que nasciam com alguma deficiência.

O professor Viegas Fernandes destaca as campanhas de eugenia - a seleção dos seres humanos com base em suas características hereditárias com objetivo de melhorar as gerações futuras - e as muitas atrocidades ao longo da história como outros fatores. "Em quatro anos, o Estado nazista, por exemplo, executou 200 mil seres humanos pelo único fato de serem pessoas com deficiência."

Os significados sociais atrelados à deficiência ao longo da história foram carregados de visões estigmatizantes, que a colocaram como algo negativo. De diferentes formas, o conceito de normalidade contribui com o capacitismo. 

Se você tem 30 anos ou mais, dificilmente tenha convivido com alguém com deficiência ao longo da sua vida escolar. Isso porque esses sujeitos eram escondidos pelas famílias e pelo Estado. Quando muito, ficavam isolados em instituições exclusivas para pessoas com deficiência. 

No Brasil, elas passaram a ser vistas (de enxergar mesmo) na sociedade principalmente com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, de 2008, que prevê que crianças/adolescentes dos 4 aos 17 anos estejam obrigatoriamente matriculados nas escolas regulares.

Outras formas de capacitismo

O estudante Thiago relatou o quanto o olhar de pena machuca, assim como supostos elogios, como "você é tão bonito, pena que está numa cadeira de rodas", que não são nada agradáveis nem para ele e nem para Karla. 

Raphael citou ainda a visão de muitos de que ele é um exemplo de superação. Na verdade, o que é superação não é superação, mas é sobrevivência. "A deficiência não me coloca numa situação melhor ou pior como pessoa. Posso estar feliz ou triste como qualquer um."

Ele cita outro exemplo de capacitismo: o fato de pessoas se dirigirem a quem o está acompanhando por acreditarem que ele não é capaz de responder. "Muitas vezes eu estou com a minha mãe do lado e as pessoas fazem perguntas sobre mim para ela. Porque, além da minha deficiência física, eu tenho a deficiência visual e o estrabismo. Então, quando eu não estou de óculos, fisicamente, aparece ali uma cena de que talvez eu tenha algum outro tipo de deficiência, mas a minha parte cognitiva é completamente preservada."

A necessidade de "provar" a capacidade também é apontada como uma barreira atitudinal por Raphael e por Viegas inclusive no ambiente de trabalho: "Existe uma desconfiança no sentido de que será que eu sou capaz de desenvolver aquilo que se espera?" 

Grazielle, que trabalha na FCEE, destaca ainda outras formas de capacitismo, como a infantilização: "Pessoas com deficiência intelectual são infantilizadas pela própria família, com roupas, mochilas de princesas, de personagens. A família faz tudo acreditando que aquele sujeito não tem condições de aprender."

Não oportunizar a eles a autonomia também é uma forma de discriminação. "Os pais fazem tudo por ele, dão banho, vestem. Aqui (na FCEE) temos um centro de iniciação ao trabalho. A gente escuta muito que se o filho for trabalhar, vai sofrer bullying, os colegas vão rir dele. A própria família acaba protegendo. É algo natural, a gente não pode recriminar os pais por isso, mas precisamos sensibilizar, ensinar os pais que os filhos deles podem estudar, trabalhar, para se sentirem capazes, serem autônomos."

Você é capacitista?

Faça o quiz e descubra o quanto você reproduz falas preconceituosas:

 

Quando abordar a deficiência?

Karla e Viegas são incisivos sobre a importância de as pessoas pensarem o porquê de perguntarem algo ou fazerem certo comentário à pessoa com deficiência. Mas e quando essas questões podem ser abordadas? Para Karla, a pergunta é válida quando se está numa relação ou situação em que isso importa, seja no lazer, trabalho ou numa sala de aula.

A melhor forma de abordar é primeiro perguntar:  "Você precisa de ajuda?" ou "Como posso ajudar?"

"Porque às vezes as pessoas também acham que tem um jeito hegemônico, um padrão para ajudar o outro. O jeito certo de ajudar alguém que não enxerga atravessar a rua é puxar pelo braço? Não. Às vezes, a pessoa prefere colocar a mão no seu ombro ou dar o braço para você. E às vezes a pessoa nem quer atravessar a rua! Então o certo é sempre você perguntar como pode ajudar", afirma Karla.

Capacitismo nas escolas?

Sim! E de muitas maneiras! Raphael Travia, que atua na coordenação pedagógica do Câmpus Joinville, afirma que, apesar de uma certa melhora na percepção das pessoas com deficiências ao longo das últimas décadas, o preconceito ainda força muitos estudantes a esconderem suas condições na escola. "A deficiência ainda é vista como uma perda, alguma coisa que você tem a menos. Muitos alunos ainda sentem isso." Ele considera o papel do professor e das equipes pedagógicas vital para ajudar esses alunos a se mostrarem e se valorizarem.

Mas e quando o capacitismo vem dos próprios professores? Grazielle traz o exemplo do processo de alfabetização. 

"Tem professora que acha que alfabetização só ocorre se for com lápis e papel. Não! Pode ser alfabetizado por imagens, no computador com digitação ou com outros recursos tecnológicos. Hoje temos "n" maneiras de alfabetizar. Quando a criança não consegue decodificar o código escrito, temos a comunicação alternativa por meio de imagens e ícones para se comunicar."

Mudar as estratégias e utilizar outros recursos para ensinar são algumas maneiras de a escola contribuir para uma cultura anticapacitista.

Como construir uma cultura anticapacitista?

As crianças que estão hoje na escola, convivendo com outras crianças com deficiência, estão aprendendo na diversidade. Esse é um dos principais caminhos apontados por Karla, Grazielle e Viegas para uma cultura anticapacitista. É uma forma de naturalizar os corpos com deficiência, mas também de tensionar os grupos e espaços a serem acessíveis e receptivos.

Em Santa Catarina, são 33 mil estudantes da educação especial nas escolas regulares, informa Grazielle. A Política Nacional de Educação Especial determina que todos, dos 4 aos 17 anos, estejam obrigatoriamente na escola e que tenham direito, por exemplo, a recursos como atendimento educacional especializado no contraturno escolar e segundo professor de turma de acordo com as necessidades de cada um.

Em Santa Catarina existe legislação específica que garante a crianças com deficiência intelectual grave ou que tenham questões comportamentais severas que frequentem uma instituição especializada, como a Apae - Associação de Pais e Amigos das Pessoas com Deficiência Intelectual ou Deficiência Múltipla. "Mas isso desde que tenham uma avaliação multiprofissional e individualizada. A criança precisa estar em sofrimento na escola para sair. Na maioria das vezes é uma questão de saúde e o objetivo é que consiga retornar à escola regular. Apenas mil não estão nas escolas regulares."

No vídeo abaixo, os servidores do IFSC relatam como suas presenças contribuem para a construção dessa nova cultura:

Como educar crianças anticapacitistas?

Se a esperança de uma sociedade anticapacitista está nas mãos das crianças de hoje, como ajudá-las nessa missão? O convívio com a diversidade é o caminho, mas também é possível construir com elas um pensamento crítico que não reproduza os preconceitos tão comuns hoje em dia.

O livreto “Como educar crianças anticapacitistas” busca contribuir com essa perspetiva. De autoria da psicóloga Karla Garcia Luiz e da jornalista Mariana Rosa, a publicação é direcionada a familiares e educadores. A ilustradora do livreto, Paloma Santos, também é mulher com deficiência.


 

"A gente tenta trazer provocações, são situações que aconteceram com a gente e mostramos através de ilustrações para contar essas histórias para as crianças. Tem três situações cotidianas no final do livro que vão exemplificar para as pessoas como às vezes o capacitismo se dá de modo muito implícito, muito corriqueiro", destaca Karla.


 


 

Ilustrações de Paloma Santos do livro "Como educar crianças anticapacitistas", de Mariana Rosa e Karla Garcia Luiz.


 

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