Pode o mar ficar sem peixes, camarões e organismos marinhos?

IFSC VERIFICA Data de Publicação: 28 jun 2022 14:39 Data de Atualização: 20 mai 2024 17:41

Ao olhar para a imensidão do mar, podemos ter uma falsa impressão de que tudo o que há nele é infinito e de que os recursos disponíveis são daqueles que primeiro os encontrarem. Mas, como veremos à frente, apesar de os recursos pesqueiros serem considerados  naturais e renováveis, a questão da pesca é bem complexa. Por isso, no post de hoje, para entender sobre como funciona a gestão desses recursos, conversamos com o coordenador do curso técnico em Aquicultura do IFSC Câmpus Itajaí, Leonardo Machado, e com a professora Janaína Bannwart, também do Câmpus Itajaí.

Quem cuida do mar no Brasil?

No caso da costa brasileira, a área até 200 milhas náuticas (o equivalente a mais de 370 quilômetros a partir da costa) é considerada área de Zona Econômica Exclusiva Brasileira, pertencente à União, e a extração de recursos está submetida às leis federais. É a Secretaria de Aquicultura e Pesca, ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), quem estabelece os padrões e as medidas de ordenamento do uso sustentável dos recursos pesqueiros.

Somam-se a esse trabalho de regulamentação da pesca, as atividades do Ministério do Meio Ambiente. São através de pesquisas de órgãos ligados a esse ministério como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Sudeste e Sul (Cepsul) que se estabelecem medidas para garantir a preservação das espécies marinhas. Outro órgão que desempenha um importante papel nesse processo é o Ibama, responsável pela fiscalização ambiental da pesca e pela notificação e autuação de infrações relacionadas às atividades pesqueiras.

Gestão da produção pesqueira

O coordenador do curso técnico em Aquicultura do IFSC Câmpus Itajaí, Leonardo Machado, explica que para garantir a reprodução das espécies marinhas é preciso adotar uma série de medidas de gestão da produção pesqueira. “Os recursos pesqueiros são recursos naturais renováveis, que se renovam todos os anos com a reprodução das espécies. Só que se não houver uma correta gestão desses recursos, eles podem se esgotar. Há um limite de renovação das espécies e esse cálculo deve ser feito baseado em critérios da biologia pesqueira. Dessa forma, é possível calcular um rendimento máximo sustentável de cada um dos recursos pesqueiros e saber quanto é possível retirar para não prejudicar o estoque para que ele possa se repor. A gente tem que garantir que não haja sobrepesca, ou seja, que se explore além do limite. Mas não é isso o que acontece mundo afora. A grande maioria dos estoques pesqueiros do mundo estão sofrendo sobrepesca e essa é uma realidade que a gente precisa mudar.”

Cartão verde com letras brancas com a frase destacada:  Os recursos pesqueiros são recursos naturais renováveis. Só que se não houver uma correta gestão, eles podem se esgotar. Há um limite de renovação das espécies e esse  cálculo deve ser feito  baseado em critérios  da biologia pesqueira

O professor cita como exemplo a pesca da sardinha na década de 1990 no Brasil, quando a atividade se tornou inviável porque o estoque de peixes estava baixo e gastava-se muito para encontrar um cardume, acarretando o fechamento de indústrias que beneficiavam o pescado. A recuperação da espécie só foi possível pr meio de um trabalho em conjunto com os empresários do setor para estabelecer critérios para a pesca. Outro exemplo é o do estoque de vieiras encontradas em São Francisco do Sul na década de 1980. “Retirou-se tanta vieira que hoje já não há mais na região, se a extração tivesse sido controlada pode ser que tivéssemos vieiras até hoje. Estima-se que a extração foi tão alta que em dois anos o estoque acabou.”

A Organização Não Governamental (ONG) Oceana publica todos os anos a auditoria da pesca e faz o levantamento de dados sobre o estoque de espécies de peixes mais consumidos no Brasil. Para acessar a auditoria de 2021, clique aqui

Apesar da importância de estudos que façam o levantamento dos estoques pesqueiros, o professor Leonardo explica que são escassos os investimentos nessa área, fazendo com que haja poucos dados sobre o volume total das espécies. “Há um navio da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) que tem capacidade para mapear cardumes e eles têm feito um trabalho sobre o estoque de sardinhas. A Univali também tinha até 2012 um programa de observadores de bordo em que pesquisadores ficavam embarcados e coletavam informações sobre as espécies pescadas. Hoje muitas informações que se têm sobre as espécies vêm do mapa de bordo das embarcações pesqueiras e no momento do desembarque.”

Captura total, defeso e tamanho de captura

O professor explica que há uma série de medidas para garantir a gestão da produção pesqueira e que é a Lei nº 11.959 de 2009 que estabelece os critérios para a sustentabilidade do uso dos recursos pesqueiros, em que se define a captura total permitida, os períodos de defeso, em que fica proibida a pesca de determinadas espécies, e o tamanho de captura. “No caso da garoupa, por exemplo, o que vale é o tamanho de captura, porque pelo tamanho você consegue verificar se ela já conseguiu se reproduzir. Só após um período de reprodução é que ela pode ser pescada.”

Defeso do camarão

No caso da pesca do camarão, são definidos períodos de defeso que variam de acordo com as diferentes regiões do país levando em consideração a reprodução da espécie. Os períodos são definidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e os estados também podem adotar medidas mais restritivas. “Para pescar camarões, além do pescador precisar do direito de acesso (licença de pesca), deverá obedecer a distância mínima de uma milha náutica da costa, observar o tamanho mínimo permitido da malha da rede e respeitar o período de defeso que vai de março a maio”, explica a professora do Câmpus Itajaí Janaína Bannwart.

Para verificar a relação de todos os períodos de defeso vigentes no Brasil, clique aqui

Defeso da tainha

No caso da tainha, são estabelecidas cotas para diferentes modalidades de pesca. Conforme a portaria da Secretaria de Aquicultura e Pesca nº 611 de 28 de fevereiro de 2022, a pesca de arrasto, também conhecida como artesanal, pode ocorrer a partir de 1º de maio. A pesca anilhada (com barco a motor) começa em 15 de maio e a pesca industrial feita a cerco/ traineira somente em 1º de junho. São emitidas até 130 licenças para pesca anilhada com cota de captura de 830 toneladas e 10 licenças para pesca de cerco/traineira, sendo a cota de captura desta modalidade de 600 toneladas na região sul e sudeste do Brasil. “ O período de pesca varia de acordo com a modalidade. No início abre-se somente a temporada para a pesca artesanal porque se entende que isso possibilita que parte das tainhas consigam migrar e de fato garantir a reprodução da espécie”, explica o professor.

Garantir a preservação das espécies também depende do consumidor

A professora Janaína Bannwart avalia que garantir a preservação das espécies marinhas também depende do consumidor. “Não há como comer camarão, que não seja o de cultivo, o ano inteiro, os períodos de defeso precisam ser respeitados. Na União Europeia há um guia de consumo sustentável que orienta o consumidor sobre os períodos de reprodução das espécies. No Brasil, precisamos trabalhar nesse sentido de orientação do consumidor.”

Cartão com fundo verde e letra branca com a frase: Não há como comer camarão, que não seja o de cultivo, o ano inteiro. Na União Europeia há um guia de consumo sustentável. No Brasil, precisamos trabalhar nesse sentido de orientação do consumidor

Ela explica que o sucesso da gestão da pesca está na adesão dos usuários em entender e cumprir as regras. “Na visão capitalista, os recursos pesqueiros são grandes commodities mundiais para levar alimento a diversos países, principalmente Europa, Estados Unidos e países asiáticos. A sobrepesca é uma realidade para a maioria das espécies alvo, devido ao aumento de tecnologias para exploração dos recursos bem como os diversos subsídios dados ao setor em diversos países. Hoje se fala muito na gestão compartilhada. Nesse sistema de gestão, as decisões são tomadas com a participação dos pescadores, principalmente das comunidades tradicionais de pescadores artesanais ou familiares. É diferente da gestão “top down” em que entidades governamentais estabelecem regras sem consulta aos múltiplos usuários, o que acaba muitas vezes trazendo conflitos e desobediência às regras”. 

Cartão verde com letras brancas com a frase: A sobrepesca é uma realidade para a maioria das espécies alvo, devido ao aumento de tecnologias para exploração dos recursos bem como os diversos subsídios dados ao setor em diversos países. Janaína Bannwart, oceanógrafa e professora do IFSC

O que acontece quando há uma diminuição significativa das espécies?

O professor Leonardo explica que em casos onde se identifica uma baixa substancial de indivíduos de uma espécie marinha é possível declarar moratória, quando é estabelecido um período em que se proíbe a pesca, o que pode ocorrer por um tempo determinado ou de forma indeterminada. No caso do mero, por exemplo, a moratória vai até outubro de 2023. Protegido há mais de uma década, o mero é um peixe de crescimento lento, que pode chegar a dois metros e meio de comprimento e pesar 400 kg. Como é manso e habita regiões rasas, o animal é um alvo fácil dos pescadores.

A aquicultura é a solução?

Ao se investir na aquicultura no cultivo de espécies marinhas, diminui-se o esforço para a retirada de peixes pela pesca extrativista, mas o professor Leonardo lembra que essa modalidade também gera impactos ambientais, principalmente para a adaptação dos espaços para o cultivo. “Há casos em que foram criadas fazendas de camarões em áreas de mangue.”

Para alimentar os peixes e organismos marinhos de cultivo é preciso ainda produzir rações com proteína de origem de animais marinhos. “Para se formar uma ração para camarão ou salmão é preciso usar farinha de peixe que vem da pesca e isso gera um ciclo que a gente não consegue se desvencilhar. Uma parte desta proteína vem de resíduos da pesca, mas como esse insumo costuma ser de baixa qualidade, é comum que seja feita a importação de peixes do Peru que não tem um grande valor comercial. Essa espécie é utilizada para produção também de ração para suínos e aves. Há uma grande dependência mundial em cima desta cadeia, o que também pressiona os estoques pesqueiros”, afirma a professora Janaína.

Cartão verde com letras brancas com a frase: Para se formar uma ração para camarão ou salmão é preciso usar farinha de peixe que vem da pesca e isso gera um ciclo que a gente não consegue se desvencilhar   Janaína Bannwart, oceanógrafa e  professora do IFSC

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