IFSC VERIFICA Data de Publicação: 29 out 2024 20:05 Data de Atualização: 29 out 2024 21:42
Você acha que vivemos numa sociedade democrática? No Brasil, as eleições regulares, realizadas a cada dois anos, garantem que sejamos uma democracia plena? E, de acordo com o seu zap, o episódio de 8 de janeiro de 2023 foi ou não uma tentativa de golpe contra a democracia?
Independentemente de golpe, cadeirada em debate eleitoral ou voto impresso e auditável, o fato é que no dia 25 de outubro comemoramos no país o Dia da Democracia. A origem da data, porém, não é tão festiva.
Criação da data
O Dia da Democracia foi criado para lembrar a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 25 de outubro de 1975, em São Paulo, no período da ditadura militar. Vladimir era diretor de jornalismo da TV Cultura e, na véspera de seu assassinato, foi chamado ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) para dar esclarecimentos sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Na sede do DOI-CODI, o jornalista foi torturado e assassinado, embora o governo militar tenha informado, na época, que Vladimir havia se enforcado na cela. A foto apresentada como comprovação da causa da morte ficou famosa pois desmentia a versão oficial dos militares, mostrando que o jornalista precisaria ter se enforcado numa posição que suas pernas alcançariam facilmente o chão.
A plantinha frágil
É atribuída ao primeiro presidente brasileiro eleito após o Estado Novo, em 1946, Eurico Gaspar Dutra, a seguinte frase: “A democracia é uma plantinha tão frágil que precisa ser regada todos os dias”. Mesmo dita num contexto em que as eleições não abarcavam todos os brasileiros, ela permanece como uma referência a respeito da vulnerabilidade do regime democrático.
Mas o que seria essa tal democracia que precisa ser regada, ou seja, protegida? A professora de Sociologia do IFSC em Jaraguá Mariana de Fátima Guerino apresenta a “democracia” como uma invenção social. “É um pacto criado por pessoas em um determinado período histórico, onde se entendeu que era bom que as pessoas se reunissem e decidissem coletivamente sobre os rumos. É uma construção social artificial, porque ela não é natural. O bebê não nasce democrático, né?”, resume.
Do ponto de vista histórico, essa invenção social ocorreu na Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas. A experiência ateniense, porém, foi soterrada quando o país passou a ser dominado pelo Império Romano, fazendo com que o modo de governo baseado no poder do povo ficasse “esquecido” até a ascensão do movimento iluminista, já na Idade Moderna. As ideias do Iluminismo reacenderam os princípios da democracia e fizeram com que a população demandasse o fim do poder absoluto dos reis, gerando revoluções tanto na Europa quanto na América.
Segundo o professor de História Jean Raphael Zimmermann Houllou, também de Jaraguá do Sul, a maneira como a humanidade se constituiu mostra como a vivência da democracia é, na verdade, uma exceção na cronologia do mundo. “A democracia é uma experiência não tão comum na história humana. Na verdade, ela é uma exceção se a gente observar os tempos da civilização. E, além disso, quando ela é implantada é com muita dificuldade, com revolução. Por quê? Porque se mexe com interesses de poderosos que dominam de forma muito mais autoritária aquela sociedade”, destaca.
Confira, nas palavras do professor Jean, o resumo da experiência democrática desde a Grécia até o surgimento do Iluminismo:
As contradições na Terra das Palmeiras
Enquanto o mundo reaprendia o que era democracia, o Brasil vivia sob a gestão de um imperador. Desta maneira, nosso país também precisou passar por diversas etapas até alcançar o modelo de democracia que conhecemos hoje.
A independência brasileira, em 1822, foi um passo tímido em direção ao rompimento dessas amarras com o autoritarismo, pois Dom Pedro I manteve uma postura absolutista e dissolveu, com apoio dos militares, a primeira tentativa de uma Constituição mais democrática.
A monarquia permaneceu sob Dom Pedro II, que governou por 50 anos, utilizando-se da divisão política entre partidos existentes no Brasil, mas mantendo o poder moderador. A Proclamação da República, em 1889, trouxe a Constituição de 1891, mas o sistema político era ainda dominado pelos coronéis, com eleições controladas pela elite rural e um voto aberto que favorecia a aristocracia – o chamado “voto de cabresto”.
A Era Vargas, iniciada em 1930, buscou romper com essa estrutura oligárquica, mas Getúlio Vargas governou de maneira autoritária durante 15 anos, concentrando poder, apesar de promover avanços sociais e trabalhistas. Após sua renúncia, o Brasil experimentou um curto período democrático, a chamada República Populista, onde presidentes como Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros foram eleitos e as classes populares ganharam mais espaço político.
No entanto, a democracia foi interrompida pelo golpe militar de 1964, que instaurou uma ditadura até a década de 1980. A redemocratização veio com a Constituição de 1988, consolidando a democracia atual. “A primeira eleição após a ditadura, porém, não foi direta, mas indireta. E, de lá pra cá, tivemos presidentes eleitos, mas dois deles [Fernando Collor e Dilmar Rousseff] sofreram processo de impeachment, que num presidencialismo não costuma ser tão comum”, evidencia o professor Jean.
No vídeo a seguir, o professor de História do IFSC detalha como ocorreu o processo de democratização em território nacional ao longo do tempo:
Que show da democracia é esse?
Com o fim da ditadura militar e a implantação da Constituição de 1988, o Brasil passou a ser considerado um Estado Democrático de Direito. Hoje é permitida a livre associação a partidos políticos e a livre manifestação do pensamento, desde que não gere calúnia, difamação ou injúria a outra pessoa, ou ainda não exponha informações que sejam consideradas protegidas ou sigilosas.
Como democracia, passamos a eleger nossos representantes em diversos níveis: nas cidades, escolhemos os vereadores e prefeitos; nos estados, elegemos deputados estaduais e governadores; nacionalmente, votamos em deputados federais, senadores e presidente. E, como são nossos representantes que criam, conduzem e fiscalizam as políticas públicas, chamamos este sistema de democracia representativa.
No entanto, a representatividade a que se propõe o atual sistema é limitada. Grupos numericamente majoritários como mulheres (que são 52% do eleitorado) e negros (56% da população brasileira) ou aqueles que são marginalizados – como a comunidade LGBTQIAP+ e os indígenas – são sub-representados nos espaços de poder, fazendo com que as decisões políticas acabem sendo dominadas por um grupo restrito que não reflete a diversidade da população.
Assista, no vídeo a seguir, a crítica feita pelo professor Lino Gabriel dos Santos Nascimento, do Câmpus Jaraguá do Sul-Centro, sobre o tema, num trecho da entrevista concedida pelo docente de Moda e Antropologia ao projeto de extensão Conversa Cidadã.
Essa visão aponta falhas que, no atual sistema representativo, perpetuam a exclusão de grande parte da população.
Democracia de verdade
Mas qual seria, então, o objetivo final de um regime democrático, seja ele representativo, direto ou qualquer outro? O professor de Filosofia Cleyton Murilo Ribas utiliza a obra do italiano Norberto Bobbio para ilustrar o que seria, em última análise, vivermos numa democracia plena.
De acordo com Cleyton, existem dois patamares na democracia: o formal e o substancial. “A democracia formal seria aquela com os elementos básicos, como o voto universal e secreto, o pluripartidarismo, a autonomia entre os poderes [executivo, legislativo e judiciário], a garantia da liberdade de expressão e de pensamento. Nós podemos dizer que o estado brasileiro é uma democracia formal. Mas a questão principal que Bobbio problematiza é a democracia substancial, que está ligada ao conceito de igualdade e que se efetiva por meio de aspectos como garantia de moradia, garantia de saúde, qualidade no emprego, emprego para todos, superação do analfabetismo e que todos que quisessem teriam a mesma chance de, inclusive, alcançar o poder”, relata.
Para alcançar o patamar da democracia substancial, faltaria, no entanto, ainda aos brasileiros uma compreensão compartilhada do que são, efetivamente, conceitos como democracia, política e bem comum. Veja, no vídeo, como o professor de Filosofia apresenta este desafio:
A atual ditadura brasileira
Um sintoma da diferença de entendimentos que existem sobre as questões apontados pelo professor Cleyton é percebido em diálogos comuns no dia a dia. Ao abordar um colega, amigo ou até mesmo familiar sobre situações da vida cotidiana, não é raro que a conversa deságue em críticas ao governo e aos políticos.
E, quando a conversa evolui, às vezes nos surpreendemos com falas que destoam da maneira como a sociedade funciona. Afinal, quem nunca viu ou ficou sabendo de alguém que acha que o Brasil passa, atualmente, por um período ditatorial?
Mas como funcionaria esta ditadura que opera dentro de um sistema com eleições e todos os demais requisitos da tal democracia formal? Onde está a censura a produções culturais como livros e filmes? Quais ideias estão sendo permitidas e quais estão sendo condenadas?
A constatação, entretanto, de que é possível falar publicamente que vivemos numa ditadura – e não numa democracia – evidencia uma contradição. “O simples fato de alguém poder dizer que o Brasil é uma ditadura e não ser cerceado em sua liberdade de expressão já mostra a contradição da frase. Pois se o Brasil fosse uma ditadura, essa pessoa não teria condições de se pronunciar, ou se pronunciaria apenas uma vez”, alerta o professor de Filosofia do IFSC.
A descrença no funcionamento da democracia parece ser um fenômeno que afeta, principalmente, pessoas mais jovens. O estudo“Open Society Barometer: Can Democracy Deliver?” (numa tradução livre: “A Democracia Cumprirá suas Promessas?”) aponta que 57% dos jovens de 18 a 35 anos consideram a democracia preferível em relação a outros tipos de governo; o percentual sobe para 71% em pessoas com mais idade.
No mesmo estudo, 35% dos jovens acham que um líder forte que não se preocupa com eleições seja um caminho positivo para o governo; entre as pessoas acima de 56 anos, o percentual cai para 26% dos respondentes.
Não ter vivenciado na pele a realidade de uma ditadura seria, segundo o professor de História Jean, um dos principais elementos que levariam jovens a cogitarem a mudança para um regime mais autoritário. “Quando a gente tem esse passado recente de uma ditadura militar e você vê pessoas novamente indo à rua pedindo intervenção militar, isso acende uma luz de alerta. Se formos por este caminho, a democracia pode morrer e podemos voltar a um período muito longo justamente de falta de democracia”, avisa.
A insatisfação manifestada pelas pessoas e atribuída ao mal funcionamento da democracia, por sua vez, pode estar ligada a um outro fator. Algo não relacionado à escolha de nossos representantes, mas igualmente fundamental para entendermos a nossa sociedade.
A professora Mariana, responsável pelas aulas de Sociologia no Câmpus Jaraguá do Sul-Centro, argumenta que a democracia está historicamente ancorada no capitalismo, um sistema que, por natureza, não parte da premissa de igualdade. Segundo ela, o capitalismo não admite que todos tenham direitos iguais, o que torna contraditória a ideia de que é possível viver numa democracia plena. “Embora as pessoas votem e escolham seus representantes, esses governantes eleitos acabam vinculados a interesses capitalistas, o que faz com que a democracia seja influenciada pelas dinâmicas desse sistema econômico. Assim, a democracia constantemente precisa fazer concessões para se alinhar ao capitalismo”, explica.
A relação entre democracia e capitalismo é marcada por um equilíbrio instável, onde a democracia parece sempre estar ajustando suas práticas para se adequar ao funcionamento capitalista. Isso limita a verdadeira representação do povo, já que os interesses econômicos muitas vezes prevalecem sobre as promessas políticas feitas durante campanhas eleitorais.
Por fim, Mariana aponta que a democracia, em muitos casos, funciona como uma ferramenta que "maquia" a realidade, ajudando as elites dominantes a parecerem mais preocupadas com o bem-estar social do que realmente são. “Muitos governantes fazem promessas de inclusão e igualdade, mas não necessariamente cumprem o que prometem. A democracia, assim, pode ser usada para camuflar a exploração capitalista, criando uma aparência de preocupação com o coletivo, mas sem um compromisso genuíno com a igualdade social”, lembra.
Assista, no vídeo, como a professora Mariana detalha a relação entre democracia e capitalismo, inclusive apontando o papel das lideranças políticas neste sistema.
A frustração ou outros sentimentos que fazem algumas pessoas pensarem que vivem numa ditadura não seriam, então, causadas especificamente pela efetiva falta de democracia. Haveria uma contradição inerente entre viver sob o capitalismo e viver numa democracia plena. "Enquanto caminhamos em direção à melhoria das condições de vida para todas as pessoas, o capitalismo possui regras ditatoriais que impedem este avanço”, destaca.
Quando direitos de minorias começam a ser ampliados, uma parcela privilegiada da sociedade é acometida de um grande desconforto. “A lei das cotas, por exemplo. Mesmo após anos em vigor, as cotas ainda causam incômodo em muitas pessoas”, ilustra.
A situação de incômodo percebida por muitas pessoas em meio ao regime de democracia é o foco da professora Mariana no vídeo a seguir. Confira:
Fazendo democracia na escola
Se, por um lado, é necessário questionar a forma como está organizada a sociedade – e este questionamento efetivo só é possível dentro de um regime que permita a livre expressão, como na democracia –, por outro lado é preciso reconhecer que a escola está inserida nesta mesma forma de organização social, reproduzindo suas falhas. “O sistema educacional está profundamente ligado aos conceitos de sucesso e fracasso, os quais favorecem estudantes de maior poder socioeconômico, que acabam ocupando os postos de trabalho mais reconhecidos e bem remunerados. Isso faz com que a educação perpetue diferenças sociais que são antidemocráticas”, retoma o professor de Filosofia Cleyton Ribas.
Para que uma democracia plena seja possível, é necessário repensar o processo educacional, revisando desde formas de avaliação até outras questões que, no processo de ensino e aprendizagem, podem contribuir para a manutenção da desigualdade entre estudantes. Veja como Cleyton relaciona a importância de repensarmos o funcionamento do sistema de educação:
Os desafios da escola também estão presentes em aspectos pontuais do cotidiano. Para a formação de uma consciência democrática, um dos percalços reside na elaboração dos currículos, que devem ir além do conteúdo e prever a promoção de uma educação crítica. Segundo a pedagoga Janete Godói, que é técnica em assuntos educacionais no Câmpus Jaraguá do Sul-Centro, a escola precisa dar condições para que estudantes percebam seu papel social, revisitem o passado e participem ativamente da construção do futuro. “O currículo deve incentivar a reflexão, permitindo que os estudantes contribuam com suas próprias visões e experiências. A educação, portanto, deve ser formadora e emancipadora, preparando os alunos para serem sujeitos ativos na sociedade, capazes de participar do espaço social com uma perspectiva mais ampla e coletiva”, defende.
No entanto, Janete destaca que as instituições enfrentam muitas limitações para implementar esse tipo de educação crítica. Após as últimas reformas do ensino médio, o currículo foi esvaziado, tornando-se mais reprodutivista do que reflexivo. “As reformas priorizaram uma educação voltada para melhorar índices e estatísticas, em detrimento de uma formação integral que prepare o estudante para ser um agente de sua própria história”, lamenta.
Além disso, a formação dos professores é um obstáculo significativo. Embora alguns educadores selecionem bons conteúdos e se dediquem a preparar currículos de qualidade, muitos entram na profissão sem o compromisso de realmente transformar a sociedade. “Isso resulta em uma formação esvaziada, que enfraquece ainda mais a capacidade das escolas de fomentar uma verdadeira consciência democrática nos alunos”, alerta a pedagoga.
A escola deve ser, ainda, um ambiente de treino para a convivência em grupo, desconstruindo individualismos e fazendo com que estudantes e educadores experimentem o convívio com a diferença e funcionamento de ambientes democráticos.
“A escola deve instrumentalizar os estudantes, promovendo dentro do próprio espaço escolar essa formação democrática. O estudante precisa vivenciar isso durante sua formação, essa gestão democrática. Isso ocorre, por exemplo, numa eleição para um colegiado, no grêmio estudantil ou quando ele tem a oportunidade de se tornar representante da turma, ficando responsável por pensar no que é melhor para o grupo e não no que é melhor para ele. Ou seja, quando o estudante se torna participante e ao mesmo tempo sujeito desse processo”, conclui Janete.
Assista, a seguir, como Janete relaciona a aplicação dessas ideias ao contexto escolar, referindo-se também à obra do educador brasileiro Paulo Freire.
A pedagoga destaca, ainda, que a educação deve empoderar as pessoas para que elas acreditem em sua capacidade de promover mudanças. Janete lembra que a educação é um processo de longo prazo e que é fundamental ensinar aos estudantes que, com consciência e criticidade, cada um pode contribuir para transformar a sociedade. Veja no vídeo a seguir:
Estude no IFSC
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