A Física Quântica pode mesmo ajudar a nossa saúde?

IFSC VERIFICA Data de Publicação: 28 nov 2023 09:36 Data de Atualização: 28 nov 2023 11:11

A Física é uma ciência essencial à Medicina. É definida como “ciência que investiga as leis do universo no que diz respeito à matéria e à energia, que são seus constituintes, e suas interações “ (Dicionário Oxford). Sendo o corpo humano parte do universo, não poderia ser diferente: a Física e suas aplicações estão presentes em exames e tratamentos. Mas, como uma das ciências consideradas mais difíceis de serem compreendidas, a Física também tem sido uma das mais usadas para nomear tratamentos sem comprovação cientifica, especialmente aqueles supostamente relacionados à física quântica.

Para esclarecer um pouco mais sobre os tratamentos de saúde quânticos, benefícios e riscos , o IFSC Verifica desse mês conversou com o professor do Câmpus São José Marcelo Girardi Schappo e Vanessa Tuono, professora do curso técnico em Enfermagem do Câmpus Florianópolis.

A Física Quântica

A física quântica é uma área da física que trata do estudo da matéria a nível molecular, atômico e subatômico: o mundo das partículas e dos átomos. “O termo quântico surge no contexto da Física, por volta do início do século 20, quando se tentava desvendar os processos de emissão de radiação eletromagnética por corpos aquecidos. Não é nada simples explicar o fenômeno com poucas palavras, mas, em linhas gerais, um físico chamado Max Planck foi o primeiro a propor que a energia relacionada a essa radiação deveria ser emitida e absorvida de modo descontínuo, análogo ao que acontece com um canhão de lançamento de bolas de tênis, por exemplo: ele só pode lançar uma bolinha por vez. A proposta de Planck, da energia do processo ser "quantizada", acabou resolvendo o problema, é aí onde surge a chamada "Física Quântica", explica Marcelo Schappo.

De acordo com o professor, os fenômenos quânticos verdadeiros estão diretamente relacionados aos comportamentos das partículas na estrutura da matéria, na escala dos átomos e moléculas. Para se ter uma ideia prática: átomos e moléculas têm tamanhos da ordem de nanômetros, e um nanômetro é o equivalente a um bilionésimo de um milímetro. É a fìsica quântica verdadeira que explica várias coisas ao nosso redor, como as cores dos fogos de artifícios, os processos de emissão da luz laser e os exames de ressonância magnética nuclear.

“Todas as pesquisas de percepção pública da ciência mostram que as pessoas confiam na ciência, uma vez que ela é uma forma de investigação da natureza que demanda metodologias específicas para tirar conclusões sobre como o mundo funciona, e suas afirmações válidas precisam ser baseadas em boas evidências. Assim, tudo que tiver ‘aparência científica’ tende a ser mais bem aceito, de modo imediato, pelas pessoas, uma vez que grande parte da população, embora confie na ciência, conhece pouco de ciência, e, por isso, são fisgados pelo vocabulário da ciência e acabam tacitamente acreditando na informação a que são expostos, sem condições de avaliar criticamente se elas fazem sentido científico ou não. Assim, as pseudociências ganham terreno e vão sendo passadas adiante como sendo produtos de ciência, quando, na verdade, não passam de estruturas com ideias sem pé nem cabeça sobre como a natureza funciona”, afirma o físico.

 


 

Conceitos como sobreposição (ou superposição), que, resumidamente, de acordo com uma das interpretações da física quântica, sustenta que, até ser observado, um elétron pode estar em várias posições ao mesmo tempo, criam uma atmosfera mística aos leigos e dá oportunidades para que pseudocientistas e charlatões possam dizer coisas como “podemos nos curar com processos quânticos, pois, no nosso corpo estão, ao mesmo tempo, as vibrações da saúde e da doença”.

Um dos marcos considerados para o início do chamado "charlatanismo quântico" - os usos indevidos e pseudocientíficos dos termos e fenômenos da física quântica - é a publicação do livro O Tao da Física, de Fritjof Capra, na década de 1970, que propõe diversos paralelos, sem base científica, entre Física e misticismo. A moda parece que “pegou”, e a lógica de usar fenômenos quânticos para dar contexto a misticismo, religião, terapias alternativas e até produtos ‘milagrosos’ disseminou-se na sociedade”, diz Schappo.

Assim, hoje se encontram ideias quânticas para tentar dar suporte à ideia de vida após à morte, para fazer “leituras futurológicas” pseudocientíficas, para vender pulseiras de equilíbrio e força, e, claro, para vender produtos e terapias alternativas como sendo boas opções de tratamento de saúde.

“Um exemplo desse último caso acabei conhecendo no 1º Congresso Catarinense de Saúde Quântica. Fui enviado especial da Revista Questão de Ciência, em 2019, para acompanhar o evento e depois fazer uma análise científica do que lá foi debatido. O resultado foi publicado em um artigo para a revista, e aí se torna bastante claro o motivo pelo qual o que eles argumentam não faz sentido: eles adaptam fenômenos quânticos reais para fora dos limites de validade desses fenômenos, fazendo apenas “analogias e jogo de palavras” vazias de significados reais para tentar vender os produtos e os tratamentos que anunciam”, lembra o professor.

 


 

Confira o trecho do artigo em que Schappo fala do uso errado do conceito da dualidade das partículas segundo a física quântica – segundo esse conceito, a luz por vezes pode se comportar tanto como ondas, tanto como partículas:

As distorções sobre esse fenômeno: esse fenômeno é usado para tentar justificar a ideia de que órgãos, células, saúde e doença também possuem “frequências”. Aqueles indivíduos que conseguem fazer seu corpo vibrar adequadamente, formando uma espécie de “sinfonia da saúde”, estarão livres das doenças. Para citar um exemplo, um dos médicos palestrantes do evento chega a dizer que aquilo que aprendeu sobre bioquímica na faculdade de Medicina, em relação aos mecanismos de ataque aos invasores do nosso organismo e processo de defesa do sistema imune, é besteira. Segundo ele, a explicação correta é uma questão quântica “frequencial”: um agente invasor emite uma frequência que as células de defesa rastreiam, como mísseis guiados para o combate.
Problema na argumentação: um leigo pode entrar nessa, crente que está aprendendo algo científico. Mas fique alerta. O problema da argumentação está numa característica que os charlatães devem “acabar esquecendo” de contar ao público: quanto maior o tamanho do objeto, mais insignificante o caráter ondulatório que ele apresenta. Assim, células (milhares de vezes maiores que um átomo), órgãos humanos e o próprio corpo humano, para qualquer fim prático, se comportam de forma muito melhor descrita por partículas sólidas do que como ondas oscilantes. Além disso, em ciência, quando falamos em frequência, sempre dizemos claramente qual o mecanismo que a gera, e também como podemos medi-la em laboratório. Na saúde quântica, essas frequências são usadas apenas como recurso de linguagem. No Congresso, em nenhum momento foi apresentada uma forma de medir e caracterizar um espectro dessas frequências.

Isso não quer dizer que nada que seja relacionado à física quântica possa ajudar na nossa saúde. Cirurgias a laser e exames de ressonância magnética são práticas de medicina convencional que se baseiam em processos quânticos. O problema não é ter o termo “quântico” associado a um produto ou a um tratamento. Schappo alerta: “O problema é bem mais sutil, pois tem muito mais a ver com a forma como se alega que a física quântica está relacionada no contexto. Veja o exemplo que citei anteriormente, do uso indevido das ideias de frequência e vibração na mecânica quântica: se o indivíduo não conhece a física quântica, pode muito bem ser enganado por ela. Mas se alguém usar a regra de ‘sempre que tiver quântica na saúde, devo saber que é falcatrua’ pode errar por excesso, ou seja, considerar pseudociência coisas que realmente são produtos de ciência genuína na medicina”.

Em linhas bem gerais, é possível dizer que sempre que se anunciar uma aplicação da física quântica para tecidos, órgãos, células e corpo humano vale ligar o sinal de alerta: receba a informação com cautela e procure por alguém da Física para esclarecer se aquilo faz sentido ou não.

“Todos os que buscam tratamentos ou serviços de saúde precisam desenvolver o senso crítico. Com o excesso de informações sendo disseminados nas redes sociais, há alguns pontos de alerta para determinados tratamentos propagados e oferecidos como ‘cura’, ‘milagre’, ‘revolucionário’ ou ainda ‘aquilo que a big pharma não quer que você saiba’”, alerta também a professora Vanessa Tuono. “Dizer que algum tratamento é baseado em estudos científicos, não quer dizer que é confiável. Evidência de eficácia se dá por meio de testes clínicos randomizados, estudos comparativos, com populações amostrais representativas. Chamamos de estudos robustos de alto nível de qualidade da evidência”.

 


 

Para Tuono, os profissionais de saúde, na graduação básica, não aprendem a consumir ciência de forma crítica. “Assim como a população em geral, os clínicos precisam ser críticos e basearem suas decisões clínicas em estudos de alta validade. Um relato de caso, mesmo que publicado em uma revista científica, não serve como evidência para decisão clínica. Faz parte do juramento de todo profissional de saúde, precisamos nos atualizar, precisamos pesquisar”, defende.

Tanto Tuono quanto Schappo destacam que o principal risco das terapias quânticas – assim como dos demais tratamentos pseudocientíficos – é a pessoa abandonar tratamentos convencionais, com melhores resultados com base em evidências. “Se alguém acredita que as doenças são causadas por ‘falta de vibrações positivas, pensamentos positivos ou frequências positivas’, por que ela estaria disposta a tomar antibióticos e a fazer cirurgias? Bastaria alterar ‘as vibrações quânticas do pensamento’. Mas isso não tem base científica”, afirma o físico. “A pseudociência afasta o indivíduo adoecido de tratamentos que comprovadamente podem agir sobre o processo saúde-doença”, completa Tuono.

A enfermeira lembra ainda das questões financeira e de gestão pública envolvidas. “Na maioria dos casos é um grande desperdício de dinheiro, tempo e energia. Hoje, o Sistema Único de Saúde (SUS) paga por terapias pseudocientíficas, então, também há desperdício de dinheiro público. Nem toda terapia ou prática integrativa em saúde é pseudociência. Algumas não foram testadas no método científico e, portanto, não possuem evidências, precisariam ser testadas. Outras foram testadas em ensaios clínicos e não fazem efeito, e outras foram testadas e demonstraram eficácia para algumas indicações clínicas”.


 

Sem falar, claro, nos casos em que, além de não fazer bem, o pseudotratamento prejudica a saúde. Há casos de intoxicação renal e hepática por excesso de vitaminas e suplementos, reações a fitoterápicos. Efeitos indesejáveis em corpos mais vulneráveis, como crianças e idosos, além de muitos relatos de abandono dos tratamentos ditos convencionais. “Enquanto busca tratamentos quânticos ou mágicos, baseados em energia, a população em geral não faz o básico para manutenção e promoção a saúde. Não aprende a se alimentar, exercitar-se e cultivar bons hábitos, o que é sim um prejuízo à saúde de cada um e da população”, aponta Tuono.

Schappo ressalta que nem mesmo a sensação de bem-estar que, supostamente, as pessoas sentem com os tratamentos sem comprovação científica. “A principal reflexão que eu faço é: realmente precisamos apelar para pseudociências – o que significa propagar informações completamente sem sentido sobre como a natureza funciona – só para gerar bem-estar e melhorar o estado de espírito? Será que precisamos deseducar as pessoas sobre ciência para fazê-las se sentir melhor? Realmente, isso é o melhor que nossa sociedade tem a oferecer?”

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